“Sou uma pessoa qualquer que por algum motivo começou a jogar RPG e esse jogo se tornou uma parte da minha identidade”, é assim que o professor de sociologia, Rafael Carneiro Vasques, se define. Pela sua história, é possível constatar que os jogos, em especial o RPG e LARP moldaram sua vida e são parte intrínseca dela. Esta relação começou ainda muito cedo na vida do professor.

Quando criança, Rafael morava junto com a sua família na cidade de São Paulo e, posteriormente, se mudaram para Poços de Caldas, uma cidade mineira com pouco mais de cem mil habitantes. Um primo de Rafael também se mudou para a mesma cidade. Melhor ainda, para o mesmo prédio, para o mesmo andar. E para piorar, na porta diagonal de seu apartamento. É claro que junto de seus dois irmãos, os quatro brincavam constantemente em sua dupla moradia.
Na época da mudança entre as cidades, Rafael estava viciado no jogo de Mega Drive: Populous, um jogo de estratégia em tempo real, em que o objetivo era criar uma tribo liderada por um xamã que precisava vencer os demais clãs. Ao perceber a compenetração de Rafael neste game, seu primo lembrou que em sua cidade natal, Campinas (SP), havia um grupo de pessoas que praticava um jogo parecido, mas utilizando livros.
Essa informação tomou conta dos pensamentos de Rafael, ele se questionava como isso funcionava e imaginava cenários distintos na prática deste jogo que era realizado de uma forma tão diferente: “e eu fiquei louco! Aquilo entrou na minha cabeça e eu fiquei imaginando os caras com um mapa gigante”, relembra o professor.
Por esse motivo, o quarteto resolveu criar seu próprio RPG, mesmo ainda sem conhecer como era um de verdade, já que até então só sabiam que esse tipo de jogo existia, mas não como funcionava de fato. “A gente pegou quatro cartolinas e fez um War Game, pintamos e o quadriculamos, também usamos vários bonequinhos e criamos regras”, explica.
Mesmo no jogo inventado por eles, Rafael começou a perceber problemas no design e em como algumas regras forçavam os caminhos da partida. “Em cada canto havia um líder e seus soldados. E os soldados não matavam os líderes, no final era líder contra líder, até porque os líderes usavam quantidade de dados maiores”, observa.
O primo de Rafael seguia com as novidades, já que continuava viajando até Campinas. De lá, o parente trouxe alguns exemplares de RPG, como Dragon Quest e Dungeons and Dragons. “Quando eu peguei os livros, comecei a ler, ler, ler, ler e virei o mestre. No mesmo dia a gente já jogou. Jogamos tudo errado, claro. Eu, até então, não sabia que existia ficha de personagem, ponto de vida, marcação, mas a gente foi jogando e pirou naquilo”, relembra.
A partir dali o amor pelo RPG começou, Rafael passou a convidar amigos de escola para participarem das partidas e o círculo de jogadores na cidade foi se expandindo. O irmão de Rafael, mais tarde, começou a viajar para São Paulo e a comprar novos jogos que passaram a compor o arsenal de experiências da família. Numa dessas viagens para a capital paulista, eles resolveram comprar jogos para revender, utilizando o CNPJ da loja de roupas e acessórios infantis da mãe dos rapazes.
Durante a semana, eles trabalhavam em uma farmácia, inclusive nas manhãs de sábado. Por isso, quando chegavam do serviço, iam até um espaço improvisado da loja da mãe e ensinavam pessoas interessadas a jogarem, para que posteriormente virassem clientes. Após os ensinamentos, os irmãos passavam a noite e madrugada jogando RPG com os amigos por diversão.
Já no início da década de 90, Rafael conta que os vampiros estavam em alta, presentes nas mais diversas mídias, como a novela “Vamp”, os filmes “Drácula de Bram Stoker” e “Entrevista com o Vampiro”, por exemplo. E não foi diferente nos RPGs, com o “Vampiro: A Máscara”, que se tornou um guia para o Live Action Role-Playing (LARP), neste tipo de RPG, o cenário não precisa ser imaginado, pois o ambiente físico é utilizado e os jogadores interpretam seus personagens, da mesma forma como fazem os atores.
“Era um tipo de RPG que permitia que você imaginasse a sua realidade e o seu personagem dentro dessa realidade. Isso quer dizer que eu não tenho que jogar na terra média, eu posso jogar em Uberlândia ou em Poços de Caldas ou em Araraquara, por exemplo. Então eu posso pensar em todas as tramas internas, políticas, sociais, históricas e econômicas da minha cidade e entrelaçar com uma ambientação e o meu personagem poder fazer parte disso. Nesse sentido, eu acho que o LARP foi uma febre no Brasil. Toda cidade do interior do Brasil tinha um grupo que jogava LARP de “Vampiro: A Máscara”. Toda!”, explica o professor.
Vampiro: a Máscara se tornou um dos mais famosos RPGs no Brasil. / Fonte: Autor Desconhecido
O LARP virou uma extensão da paixão pelo RPG na vida de Rafael, a maneira de jogar é diferente, mas é tão divertida quanto o que ele estava acostumado. Em 1996, ele e um grupo de amigos decidiram criar seu próprio jogo de LARP, num grupo de dez pessoas criaram as regras, os personagens e todos os detalhes necessários para se criar uma boa história e partida. Em seu aniversário, Rafael decidiu comemorar jogando uma partida com os amigos e conseguiram reunir mais de trinta pessoas que jogavam no meio das ruas de Poços de Caldas.
Com o interesse nítido dessas pessoas em jogarem LARP, Rafael passou a mestrar partidas quinzenalmente para este grupo. Pessoas de cidades vizinhas que souberam dessas atividades, passaram a viajar para a cidade mineira para participar das partidas mestradas por ele. Esse ritmo só diminuiu com a mudança de Rafael para Araraquara, quando ele foi fazer sua graduação em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista (UNESP), neste período, ele só jogou por quatro vezes. Ele relata que quando foi fazer mestrado, que envolvia RPG e educação, o LARP “ficou adormecido” dentro de si.
As partidas de LARP retornaram a vida de Rafael nas salas de aula, quando passou a dar aulas e a conhecer um estilo de jogo mais atrelado à educação. “Eu penso que o LARP, mais até que o RPG tradicional, tem uma possibilidade muito grande na educação”, opina o mestre. Durante seu mestrado, ele percebeu a ainda precária participação da academia na área dos jogos, em especial do RPG, para fazer sua dissertação de mestrado. Por isso, notou a necessidade de arquivar os conhecimentos daqueles que são relevantes nesse cenário no Brasil, assim ele deu início a um projeto filmográfico.
A ideia era entrevistar figuras relevantes do cenário do RPG no Brasil e produzir uma espécie de documentário. No início ele contou com a ajuda de uma estudante que possuía uma câmera profissional para realizar as gravações, mas tempos depois se viu só nesta missão. Além disso, com a pandemia no novo coronavírus, o contato presencial foi impossibilitado, e as viagens programadas para realizar as gravações precisaram ser canceladas. Ainda assim, o professor não desistiu de sua missão e passou a realizar as entrevistas por chamada de vídeo, um recurso amplamente utilizado durante este período epidêmico.
Naturalmente que a interação não é a mesma almejada pelo mestre em educação, mas o objetivo da coleta de informação ainda poderia ser alcançado, mesmo com as barreiras físicas. Essa meta é importante, de acordo com Rafael, pois esse arcabouço informacional pode ir se perdendo com o tempo, à medida que as autoridades da área possam nos deixar sem que sua imensa contribuição possa ser ainda mais valorizada. Por isso, Rafael está realizando as entrevistas e as disponibilizando em seu canal no Youtube, já são mais de quarenta vídeos com nomes de peso no cenário do RPG nacional.
Rafael também é um ativo contribuinte do cenário brasileiro. Além de mestre na área, ainda criou diversas produções, como o LARP premiado: “Sobre a arte de bem governar terras e povos”, vencedor da categoria Best Committee Larp do Golden Cobra Challenge 2021. Dentre suas produções também encontram-se diversos RPGs, como “Antes do Começo – Before the Beginning”, ”Sobre o Reino da Necessidade”, “A assim chamada acumulação primitiva” e o mais recente “Hybris”, que apresenta uma proposta inédita de regras. Mais informações sobre esses e outros jogos estão disponíveis no site do professor: https://www.raca.games/.
