Porque a plataforma de desenvolvimento de jogos, presente na mente dos jogadores a muito tempo, está com a moral tão abalada?
No processo de criação de jogos muitas ferramentas são necessárias, desde aplicativos para montagens visuais a plataformas para a programação das mecânicas e funcionalidades dos jogos. É dessa necessidade que surgem os motores de jogos, esses que são plataformas que buscam simplificar e abstrair o processo de desenvolvimento de jogos, servindo como um ambiente de concentração para programação e montagem visual de tal mídia.
Unity, Unreal, Godot e Source são alguns dos motores de jogos mais populares hoje em dia, já que tem um acesso aberto ao público, esses, em um primeiro olhar, não se diferenciam tanto um dos outros. Todos trazem em si possibilidades de desenvolvimento de jogos complexos tanto em 3D quanto em 2D, com as diferenças principais sendo categorizadas em questões mais específicas como possibilidades de leis físicas dentro de jogos ou de facilidade na iluminação. Mas dentro das plataformas mais populares de motores de jogos uma se diferencia do geral, principalmente por sua acessibilidade e por focar em um tipo de jogo em específico: o RPG Maker.
História e infâmia
O RPG Maker é uma plataforma de criação de jogos de RPG que vem fazendo sucesso desde os anos 90, popularizada no ocidente durante os anos 2000, o aplicativo tem uma das histórias mais infames do mundo dos jogos, mas também possui uma das mais fiéis comunidades desse universo.
Era da exclusividade (1992 – 1995)
Corpse Party um sucesso do terror e um dos primeiros grandes lançamentos da plataforma. Fonte: library of the deamed
Criado em 1992, RPG Tsukūru Dante 98 é a primeira instância na franquia do RPG Maker, focado na criação de jogos de RPG a plataforma contava com ferramentas de sprites (objetos gráficos 2D) e uma linguagem de código simplificada. Exclusivo para a plataforma NEC PC-9801 e só propagado no Japão, essa versão da plataforma era frequentemente incluída nos produtos da ASCII Corporation.
Em 1997 é lançado o RPG Maker 95, a primeira plataforma de desenvolvimento de RPG baseada no Windows, se mostrando um corte acima das plataformas competidoras. Essa versão apresenta uma maior qualidade em sprites e uma resolução maior de tela. Ainda era exclusiva para o Japão, mas com esse aumento em qualidade ela não se manteria assim por muito tempo.
Era da pirataria (2000 – 2003)
Yume Nikki é um dos responsáveis por desencadear o interesse no RPG Maker no oeste. Fonte: PC GAMER
Desde sua origem e desenvolvimento, a empresa Enterbrain, criadora do RPG Maker e filial da ASCII Corporation, nunca teve como objetivo desenvolver produtos para o público fora do Japão e isso vinha incomodando alguns jogadores que conheciam a plataforma. É esse incômodo que levou o estudante russo conhecido como Don Miguel a lançar uma versão ilegal do criador de jogos, com uma parca tradução para o inglês.
A versão chamada de RPG Maker 95/2000 foi lançada nos anos 2000 e se espalhou de forma descomunal fora do Japão. Graças a sua facilidade de navegação e criação a plataforma se tornou um sucesso entre o público adolescente, afinal a pequena possibilidade de desenvolver o próximo grande RPG sem programar era incrivelmente atraente.
Uma tabela de elementos retirada do jogo Sword of Mana como os programadores de RPG Maker faziam. Fonte: PC GAMER
É nesse momento que a comunidade do RPG Maker começa a crescer e se desenvolver, blogs e comunidades online começam a surgir como espaço para trocas de ideias e de elementos artísticos. Já que muitos dos membros dessa comunidade eram adolescentes, esses não tinham habilidades artísticas, então optaram por roubar elementos dos outros jogos, fossem personagens, fundo ou texturas. Os jogos se tornavam então misturas confusas de elementos de Final Fantasy, Secret Of Mana, Chrono Trigger e outros RPGs famosos na época.
Mas com o passar do tempo e costume com a plataforma, mais e mais jogos únicos surgiam na comunidade. Por exemplo, a versão 2003 da plataforma que serve como receptáculo para um dos jogos de rpg maker mais aclamados da história, Yume Nikki.
Durante 4 anos todas as próximas versões da plataforma eram rapidamente traduzidas para inglês e se espalharam pela internet, agora longe do alcance da Enterbrain era impossível impedir a expansão do RPG Maker para os falantes de inglês. Mas, em consequência, uma fama um tanto quanto ruim começou a surgir ali também.
Oficialização e mudanças (2004)
O jogo To the Moon, feito na versão XP do RPG Maker, é até hoje considerado um dos melhores RPGS já feitos. Fonte: Epic Play
Em 2004 uma nova versão do RPG Maker foi lançada no Japão, seguindo as próximas semanas essas foi traduzida, crackeada e lançada ilegalmente no oeste. RPG Maker XP seguia a formulação dos seus antecessores no que melhorava maior resolução de tela, maior qualidade de sprites, um novo sistema de mapa e a maior mudança: a adição de um sistema de scripts, isto é, a possibilidade de integração real de códigos aos jogos.
Diferente de versões anteriores, a possibilidade de mudanças diretas nos códigos fez com que o RPG Maker XP fosse divisível. Muitos navegavam para a plataforma por sua forma de desenvolvimento simples sem a necessidade de conhecimentos sobre codificação, mas os criadores que já sabiam programar viram isso como uma adição altamente positiva além de futuramente se tornar lucrativa.
A possibilidade de modificar o código também trouxe consigo a opção de adicionar pacotes, isto é, códigos escritos por outras pessoas, que se encaixam em qualquer jogo, esses apresentavam menus animados, funções estéticas dentre outras. Essa possibilidade de produção de pacotes criou dentro da comunidade de RPG Maker um mercado de trocas e compras de funções codificadas específicas. Com isso a comunidade crescia cada vez mais.
É nesse período também que a Enterbrain cede e legaliza a marca do RPG Maker no oeste, mas as pessoas que ja possuiam uma versão ilegal do programa não viram necessidade de apoiar esse legalmente, assim a versão ofcial foi praticamente ignorada nesse peirodo.
A era moderna (2007 – 2014)
Lisa the painful uma das mais interessantes experiências feitas na plataforma RPG Maker . Fonte: Moby games
Com o lançamento de uma nova versão do programa, o RPG Maker VX a Enterbrain viu mais uma oportunidade de evitar a pirataria do seu programa nos países fora do Japão, o único problema foi que essa versão se tornou uma das piores da história do software. Com gráficos piores, menor resolução de tela e um sistema de mapas sem elementos anteriores, a comunidade dos fãs de RPG Maker não viram utilidade para o software.
Como uma segunda tentativa de integrar os países falantes em inglês a subsidiaria contrata a empresa Degica para fazer a mediação e publicação do programa no oeste. Ela assume um perfil mais próximo à comunidade, criando fóruns oficiais, uma rede de suporte e um sistema de feedback além do mais importante eles publicaram a ferramenta na Steam a maior plataforma de compra de jogos.
Mas com essa nova direção a comunidade deveria mudar, as ações de pirataria e de roubo de elementos de outros jogos se tornou totalmente proibido. Para compensar a falta artística dos desenvolvedores, Degica lançou os RTPs (Run Time Packages), pacotes de biblioteca artística gratuitos que servem para substituir os elementos que seriam normalmente apropriados de outros jogos. Essa ação é de início muito boa mas iria ter um impacto altamente negativo na comunidade.
RPG feito usando o RTPs sendo uma forma gráfica bem comum comparado a outros jogos na steam. Fonte: Moby games
Em 2007 outro lançamento no mundo dos jogos foi o Steam Greenlight, um sistema que permite os usuários postarem seus jogos para comunidade comprar e jogar. Assim o lançamento do RPG Maker VX, uma plataforma de fácil criação de jogos, e a iniciativa greenlight, um espaço para postagem de jogos, coincidem de forma perfeita e causaram uma avalanche de jogos de RPG Maker na Steam, mas o maior problema é que todos usavam os mesmos elementos vindo dos RTPs então, nessa quantidade enorme de jogos, todos pareciam o mesmo.
É nesse momento que se propagou a fama moderna dos jogos de RPG Maker como jogos sem inspiração, medíocres e de baixa qualidade. Reviews na Steam e em fóruns refletem isso. As pessoas ligam as ideias de jogos mal feitos, com baixo esforço e falta de paixão, muitas dessas ideias foram discutidas pelos adms do R/Games, o maior fórum de jogos na internet hoje em dia.
(Fonte: Why do Peope Hate RPGMaker)
Renascimento (Atualmente)
OFF é um dos jogos mais populares feitos com RPG Maker, ele se destaca por sua arte única e diferente forma de se abordar o gênero RPG . Fonte: PC GAMER
Essa fama continua até hoje sobre os jogos de RPG Maker, a correlação entre qualidade e quantidade deles é algo sempre levantado em debates e discussões sobre motores de jogos. Mesmo com edições mais complexas como o RPG Maker MV de 2015 que aplica a linguagem Javascript na forma de código, o espaço dos jogos de RPG Maker nas plataformas de venda de jogos é negativo.
Mas é fora de espaços como Steam e Epic que esses conseguiram crescer e se destacar, quando feitos com uma direção artísticas e grandes ideias. O RPG Maker é uma plataforma perfeita para artistas com boas ideias e poucas noções de programação, é nessa combinação que jogos de RPG experimentais surgem e fazem sucesso dentro da comunidade de jogadores.
Grimms Hollow é um rpg com inspirações em Undertale e ganhou a comunidade de jogadores pela sua arte e personagens únicos . Fonte: Steam
Jogos como Corpse Party, Space Funeral, OFF, Ao Oni e One Shot mostram as possibilidades que essa plataforma pode chegar quando escolhas fora do padrão são feitas. E a comunidade de jogadores vem percebendo isso. Nos últimos 3 anos os jogos de RPG Maker tem tido um renascimento de certa forma. Jogos experimentais como OMORI e Grimms Hollows tomaram a comunidade e mostraram que ainda há espaço para os jogos da plataforma no ambiente dos jogos modernos.
O RPG Maker é uma plataforma simplista e ideal para começar a explorar o mundo do desenvolvimento dos jogos, mas ela pode ser levada aos extremos e criar experiências únicas e divertidas. A fama que este carrega é sim em partes negativas, mas é impossível negar a influência que esse teve e tem na formação das comunidades de jogadores online e na expansão do gênero de RPG nos jogos eletrônicos.