“Meu pai tinha mania de inventar jogos”

“Meu pai tinha mania de inventar jogos”

Foi assim que Carlos Seabra, um dos mais conhecidos criadores de jogos do país começou a nossa conversa. O seu pai, Mário Seabra foi um pioneiro na criação de jogos famosos do Brasil e exerceu forte influência na carreira de seu filho. Apesar de ter alcançado sucesso na área de jogos, Mário não possuía formação neste setor, ele era, na verdade, um publicitário apaixonado por jogos. Sua primeira relação profissional com este universo lúdico se deu, na década de 70, quando ficou responsável por uma promoção da marca de eletrodomésticos Arno. Ele criou um jogo relacionando alguns produtos da empresa com os personagens do conhecido conto da “Branca de Neve e os Sete Anões”. 

Anos mais tarde, quando Carlos já era adulto e trabalhava como secretário editorial, seu pai optou por abandonar a carreira publicitária e decidiu se tornar um “inventor de jogos profissional”. Mário procurou a Grow, uma empresa brasileira que produz e vende jogos de tabuleiros e brinquedos, e ofereceu alguns jogos que tinha criado. Suas ideias foram bem recebidas pela companhia e em pouco tempo Mário passou a receber encomendas de jogos de outras empresas e instituições, como a Editora Abril.

Nesta época, Carlos tinha acabado de sair de uma editora e passou a trabalhar como autônomo no escritório de seu pai. Com a imersão de Mário na indústria dos jogos e a desobrigação de tempo de Carlos com um emprego fixo, o filho pôde acompanhar e ajudar o pai nessa nova empreitada profissional. Na Editora Abril, Mário apresentou uma ideia inovadora: um fascículo quinzenal chamado: “Todos os Jogos”, que mostrava a história dos jogos pelo mundo, cada edição contava com um jogo de tabuleiro, regras de um jogo de cartas e uma caixa com pecinhas. “No fascículo número um, a gente dava quinze peças vermelhas e no número dois, quinze peças brancas junto com as regras do gamão, porque eles usariam essas 30 peças para jogá-lo. Mas desde a edição um já dava para jogar algum joguinho, um shogi ou um chaturanga, por exemplo”, relembra Carlos.  

A ideia foi muito bem aceita e Carlos foi contratado como secretário editorial deste projeto, ele era responsável, dentre outras coisas, pela contratação de fábricas para a produção de tabuleiros e pecinhas, redação das regras e testagem do funcionamento dos jogos. “Me lembro do problema que foi contratar dados, [na edição] número um a gente dava dois dados, mas como a tiragem do fascículo era de 150 mil, precisávamos de 300 mil dados! E não tinha nenhuma fábrica que pudesse entregar isso”, conta.

Assim, Carlos aprendeu muito sobre essa parte produtiva e industrial dos jogos, acompanhando a compra de materiais já existentes, como fichas de poker, ou a produção daqueles que precisavam de mais tempo para serem entregues, como os dados comuns e especiais, de jogos como Senet e Real De Ur. A equipe responsável pelo fascículo era grande e composta por nomes de peso, como a conhecida dramaturga Adelaide Amaral, que na época trabalhava como redatora das regras.

A testagem dos jogos, para saber se as regras estavam escritas de maneira clara, era feita com adolescentes voluntários, que faziam parte do público-alvo do fascículo. A editora mandava uma perua buscar os voluntários que eram reunidos em uma sala para jogar. Eles precisavam ler as regras e jogar a partir de sua interpretação, se houvesse dúvidas, Carlos as respondia por meio de texto, assim se eles compreendessem com essa nova instrução escrita, ela era aderida às regras para facilitar o entendimento dos leitores. “Testei mais de 600 jogos”, afirma Carlos.

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Edições de “Todos os Jogos”, um dos legados dos Seabra | Fonte: ludopédia

Anos mais tarde, após o sucesso de “Todos os Jogos”, os Seabra saíram da Editora Abril e passaram a trabalhar em conjunto fazendo jogos para grandes empresas, como o Banco Nacional e Souza Cruz. Mário não gostava de reuniões com muitas pessoas ou de ter que se deslocar para negociar, então Carlos passou a atuar como representante e intermediário dos acordos com essas grandes corporações.

Entre as encomendas, uma que foi muito importante, aconteceu em 1981, feita pela Grow. A empresa de jogos pediu que Mário Seabra fizesse uma continuação de seu sucesso de vendas: War. O desafio foi aceito pelo pai de Carlos, pois sabia que o filho amava este jogo. Assim, Mário passou a responsabilidade da criação do War II para Carlos e seu colega de profissão Fernando Fonseca. “O War II tinha que ter tudo do War e, ao mesmo tempo, ter coisas diferentes”, explica Carlos. A primeira ideia de mudança foi a incrementação da aviação: o grande diferencial da nova versão, além disso a formatação do mapa era outra, não mais possuía a projeção cilíndrica do War clássico, na versão de Carlos a projeção era plana. 

War II foi e continua sendo um sucesso, de acordo com Carlos, os jogos não costumam ficar muitos anos nas prateleiras das lojas, pois com o tempo a sua produção e comercialização já não valem mais a pena pelos altos custos envolvidos. Mas isso não aconteceu com o jogo de guerra dos Seabra que, após 40 anos da data de lançamento, continua dando lucros para a Grow.

Já em 1984, paralelamente aos trabalhos independentes, Carlos começou a trabalhar no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). Ele foi contratado para coordenar o programa de “Informática e Educação”. Nessa época, ainda nem existia o Windows, os computadores disponíveis eram Sinclairs, Itautec e Dos. “O Senac tinha um andar cheio de computadores, mas não tinha gente para usar aquilo, as salas ficavam vazias”, relembra. Por isso, Seabra tinha a missão de trazer novas pessoas para começarem a aprender a utilizar os computadores, com este objetivo em mente, teve a ideia de usar os jogos como chamariz.

Carlos convidou o pessoal de um clube xadrez que conhecia para disputar um campeonato do jogo de estratégia, mas nos computadores Apple 2 do Senac. “O software não era grande coisa, tanto que os vencedores eram seres humanos. Eles disputavam contra o computador, hoje em dia isso é difícil, até campeões mundiais perdem para os softwares”, explica.

Sob influência dos computadores do Senac e seu conhecimento sobre o universo dos jogos, Carlos criou o “Clube Sinclair”, ele entrou em contato com pessoas que trabalhavam com uma revista que publicava programas para o Sinclair, em que os leitores utilizavam os programas descritos nas páginas para rodarem joguinhos. Dessa maneira, com o clube, as pessoas podiam trocar diferentes programas e jogos, todas as terças e quintas a noite.

Tempos depois, Carlos foi convidado a se tornar gerente do Senac, aprofundando-se ainda mais no universo da tecnologia, informática e educação. Paralelamente, ele era presidente da Federação Paulista de Cineclubes e trabalhava como tradutor de quadrinhos para a revista Abril.

Já muito envolvido com a informática e com seus contatos no mundo dos jogos, Carlos passou a receber encomendas de jogos digitais de grandes empresas, como: Vale do Rio Doce, Odebrecht e Banco do Brasil. Sem nunca parar de produzir jogos de tabuleiro. De acordo com Carlos, seu sonho é unir os dois formatos num único jogo: físico e digital, no entanto, apesar de tentar e chegar próximo do resultado, ainda não conseguiu concretizar esta missão.

Atualmente, Carlos Seabra, de 66 anos, continua produzindo jogos e trabalhando muito, mais fortemente na área de educação, dando palestras sobre o ensinar relacionado com as novas tecnologias, mídias e jogos. A relevância dos Seabra no universo dos jogos brasileiros é incalculável, neste perfil contamos um pouco da história de um dos pioneiros dos jogos no Brasil, seu legado e contribuição vão muito além dessas poucas linhas.

Carlos Seabra | Board Game Designer | BoardGameGeek
Carlos Seabra | Foto: Board Game Designer

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