Aventuras em Texto de um Designer: O Pioneirismo de Renato Degiovani nos jogos nacionais.

Aventuras em Texto de um Designer: O Pioneirismo de Renato Degiovani nos jogos nacionais.

Atualmente as crianças nascem em um mundo digital, onde não ter um computador ou dispositivo eletrônico desde pequeno é incomum para o padrão da classe média. Por esse motivo, Renato Degiovani gosta de lembrar àqueles que estão chegando agora à essa área que “quando comecei, não existia usuário de computador sem que ele soubesse programação! O usuário tinha que aprender a programar, e quando aprendia, se sentia no controle do computador.”

Imagem: Renato Degiovani. Fonte: Arquivo

Crescer em uma época em que diversão eletrônica era algo raro, a atividade principal de entretenimento das crianças, principalmente em uma cidade de interior como Orlândia, onde cresceu, eram as brincadeiras de rua, se embrenhar no mato ou nadar nos córregos da região. Jogos estavam reservados aos dias chuvosos e ainda assim eram raros, por conta do preço elevado de brinquedos e jogos  e os presentes eram apenas em datas como o Natal e os aniversários, quando muito no Dia das Crianças. Muitas vezes eles copiavam os componentes dos jogos dos amigos para poder jogar em suas próprias casas, quando o clima não favorecia a diversão nas ruas. E realizar esse processo de cópia deu a Renato a percepção sobre a possibilidade de se criar jogos.

Imagem: Capa do livro 40 anos desenhando aventuras, publicado pela Bitnamic. Fonte: Arquivo

Mas cidades pequenas tem suas limitações. Quando se quer explorar o que a cidade não tem a oferecer, e você não tem como iniciar um movimento para que ela passe a oferecer, a única opção é buscar seu destino em outro lugar. Renato iniciou o processo ao estudar em Ribeirão Preto, cidade vizinha, seguiu ao cursinho em São Paulo antes de se mudar para o Rio de Janeiro, para cursar Desenho Industrial e Comunicação Visual na PUC-RJ, onde teve seu primeiro contato com computadores e com programação.

“Quando você se sente no controle do computador, o que você quer fazer? Jogo! Começa por coisas pequenas, que você sabe que dá conta de fazer, como o jogo da velha, por exemplo.” A sua vivência, em conjunto aos conhecimentos obtidos nos cursos, adicionados à essa percepção de controle do computador, e potencializados pela forma como jogos de computador eram comercializados à época, o levou a pensar jogos de computador como um produto de consumo, não como algo descartável ou sem interesse, como era até então.

Mas os jogos que o encantaram foram os no estilo do (Colossal Cave) Adventure, também chamados de jogos de adventure ou apenas de adventure. Jogos cuja interface é toda em texto, apresentando a descrição de uma cena, em conjunto com um mecanismo de interação onde o jogador digita comandos, embora alguns jogos, como o clássico “O Hobbit”, apresentam algumas cenas de forma gráfica.

Imagem: Tela de uma partida de Colossal Cave Adventure, o jogo que inspirou toda uma geração. Fonte: Arquivo

“É engraçado, porque (sou) um designer gráfico, formado, trabalhando na área visual, gostar muito mais de um adventure de texto do que de um adventure gráfico. Eu achava uma coisa louca você conseguir só com o texto conduzir uma narrativa inteira no formato de jogo, de solução de problemas, sem utilizar uma única imagem.” E foi sua percepção como designer que o fez perceber a potencialidade daquilo se tornar um produto, pois se ele gostou, outros também podem gostar e se mais pessoas gostarem, transformar aquilo num produto o permitiria comercializar.

The Hobbit (1985) by Beam Software MSX game
Imagem: Tela de uma cena da versão MSX do adventure “The Hobbit”. Fonte: Arquivo

Essa aventura, em produzir e comercializar jogos, teve um facilitador pois, na década de 80, ninguém entendia qual era a profissão de um desenhista industrial. Renato não tinha a exigência, da sociedade em geral, de produzir algo com prestígio, como usualmente ocorre com as profissões de engenheiro. Sua formação gerava mais dúvidas e curiosidades do que compreensão. E quando ele não se sentia à vontade para tentar explicar, ele dizia que era engenheiro, porque era mais fácil para os outros aceitarem. Essa situação, em conjunto com o ideário sobre computadores pessoais na época, favoreceu a possibilidade de exploração.

Mas, mesmo quando conseguiu um emprego em uma revista para escrever análises de  software, Renato lembra que havia preconceito com as atividades que eles realizavam. Porque havia a necessidade de jogar para produzir os conteúdos ou para avaliar o conteúdo de colaboradores, que na maioria das vezes eram jogos, os colegas de trabalho de outras equipes acreditavam que eles estavam se divertindo. “A gente queria se divertir, mas aquilo ali era trabalho, e entre jogar para se divertir e ‘jogar’ para trabalhar existe uma diferença muito grande!”

Desde pequeno Renato gostava muito de jogar, mas a necessidade de reunir pessoas para jogar limitava a frequência das atividades, a limitação da quantidade de jogos na época, bem como o acesso a eles, também era um impedimento. Essa situação manifestou em Renato a vontade de criar jogos, mas principalmente jogos que não dependessem de outras pessoas para que a experiências do jogar fosse possível. Com o computador, Renato não apenas teve a possibilidade de jogar sem a necessidade de outros, mas também a de criar seus próprios jogos.

Imagem: Capa e Páginas do Aventuras na Selva, publicadas na revista Micro Sistemas de 1983. Fonte: Arquivo

“Amazônia” foi o primeiro jogo publicado comercialmente, talvez um de seus mais famosos, e foi uma evolução do jogo “Aventuras na Selva”, que foi publicado na revista Micro Sistemas, que trabalhou por anos e chegou ao cargo de editor. A inspiração para seus jogos foi melhorar a experiência dos chamados livros jogos, em que a narrativa te apresenta uma decisão e te leva para páginas específicas dependendo da escolha. A facilidade de olhar as páginas que as decisões levavam e escolher o melhor caminho, ou seja, a facilidade em trapacear, foi uma dessas motivações. Nos jogos eletrônicos você não tem acesso a esse tipo de prática, a menos que você conheça muito bem como ler os binários dos programas, fazendo com que o esforço para trapacear se tornasse proibitivo e que o usuário se interessasse mais na experiência de jogar.

O que é um livro-jogo? | Meeple Divino
Imagem: Livros jogos em português produzidos por Ian Livingstone e Steve Jackson. Fonte: Arquivo

E por experiência, Renato sempre se manteve fiel ao que desejava projetar nos jogadores. “Jogue como se você estivesse vivenciando essa experiência. Você não vai encontrar uma arma laser na floresta, você não vai encontrar um cartão de crédito na floresta”, argumenta a respeito da frase que acompanhava o pacote distribuído com o “Amazônia”. “Eu acho que os computadores abriram toda uma nova possibilidade com jogos que antes não era possível. Além do fato de te permitir criar seus jogos, era genial! Eu acredito que essas características nos empurraram para esse momento.”

A publicação do “Aventuras na Selva” chamou a atenção de algumas “Software Houses”, que queriam publicar como produto, mas não sabiam como. Renato sugeriu que o jogo ficasse mais completo e que tivesse outro nome, mas que ele trabalharia no processo do design de jogos e que todo o resto: publicidade, produção das embalagens e gravação das fitas K7, que era o meio de distribuição de jogos na época, fosse de responsabilidade das publicadoras. Renato apenas iria dar indicações nessas tarefas, mas que não iria se responsabilizar. Ele lembra que “era o paraíso do game design! Eu podia focar na experiência que eu queria para o usuário”, bem como sobre o curioso fato das gravadoras gravarem o “Amazônia” no intervalo entre as produções de final de ano do Roberto Carlos e da Simone.

Imagem: Propaganda da primeira edição do jogo Amazônia, para diversas arquiteturas. Fonte: Arquivo

E assim, como todas os outras formas de entretenimento, que competem entre si, o jogo, para ele, tem que conquistar a atenção logo nos primeiros minutos de experiência, e isso envolve não apenas os gráficos, como ele mesmo já havia comprovado com o “Amazônia”, mas com a experiência em geral. “O jogo pode até ser divertido, mas se você precisa jogar com outros e o jogo não gerencia com quem você vai jogar, te colocando pra jogar contra jogadores experientes logo de início, você vai se frustrar e abandonar.”

E no processo de criação de jogos eletrônicos, Renato afirma que ele não tem a programação como foco, você tem que dar um incentivo ao jogador para que seu jogo seja bem sucedido. “90% do processo não é divertido, é um trabalho que pode ter situações que são divertidas, mas a maior parte do tempo é trabalhoso, pra não falar chato.” E foi pensando em diminuir o esforço em programação e em processos chatos que Renato decidiu criar o “Editor de Adventures”, que evoluiu para o que hoje é conhecido como “Projeto Gênesis”, disponível em seu portal www.tilt.net, projeto voltado à produção e desenvolvimento de jogos.

“Eu quis facilitar o processo de criação de jogos para outros. Quando eu estava para criar o Aventuras na Selva eu sempre pensei dessa forma, se eu fizer direitinho, eu construo um sistema que eu posso aproveitar pra outros jogos. E foi o mesmo que eu usei para o Amazônia e depois, com uma melhoria, para o Angra I. E foi evoluindo até atingir um limite para a tecnologia.” Esse processo continua até hoje, mesmo que o resultado comercial dos editores não atinja os patamares dos jogos, ele continua a trabalhar nos editores porque gosta e porque dá a ele a possibilidade de criar inovações que poderão ser usadas em seus jogos.

Atualmente Renato dedica-se apenas aos adventures oferecendo, via www.tilt.net, de um sistema de geração de adventures online, o “Micro Aventuras”, e também com o “Projeto Gênesis”, a sua ferramenta de produção de Adventures, a qual ele apresenta lives todo sábado sobre o projeto. Além disso, o portal abriga o projeto “Pergaminho”, que tem por objetivo ser uma enciclopédia de adventures em português.

Imagem: Ilustração de seções do sistema GENESIS. Fonte: www.tilt.net

Em relação à indústria nacional, Renato menciona que até aproximadamente 2015 o mercado estava iludido, acreditando que por saber usar as ferramentas que a grande indústria dos jogos usa, as empresas também conseguiriam produzir jogos com o mesmo tamanho e apelo comercial. Ele acredita que o caminho não é tentar copiar os grandes sucessos, também chamados “triplo A”, mas sim buscar produzir jogos pequenos, que caibam no orçamento local.

Segundo Renato, a melhor forma de se aprender a fazer jogos, até o momento, sem uma metodologia comprovada, é fazendo jogos, especialmente jogos pequenos. Fazer, experimentar, falhar, corrigir e tentar de novo, até encontrar o sucesso. E lembra que a Rovio estava à beira da falência, com diversos projetos falhos, quando lançaram seu jogo de maior sucesso, o “Angry Birds”.

“Se você se propõe a sair do mainstream e procurar um nicho diferente, com produções que não demandem tanto investimento assim, o mercado produtor indie é o mais produtivo e criativo. O mais propenso a encontrar o próximo ‘triplo A’.”

Renato Degiovani foi um desbravador no mercado nacional de produção de jogos. Em uma época de complicadas crises econômicas e em que computadores domésticos não tinham o alcance que têm atualmente, ele se aproveitou do sonho de sua infância de criar um jogo que fosse possível jogar sozinho, corrigindo os defeitos dos livro-jogos, que propunham isso na época, explorando duas áreas completamente incertas, a de informática e a de jogos, com a de jogos ainda se mostrando incerta até hoje.

Recentemente Renato publicou uma nova versão do “Amazônia” pela empresa Bitnamic e não pensa em parar de criar adventures tão cedo, já avisando que “se eu estiver vivo até lá, eu vou criar uma versão do Amazônia para o holodeck”, a sala de hologramas do Jornada nas Estrelas. Quanto a isso, só posso parafrasear o capitão Picard e dizer: “Make it so!”

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