Joana Schossler: infância, luta e jogos

Joana Schossler: infância, luta e jogos

Acredito que uma boa definição para a  historiadora Joana Carolina Schossler é que ela é uma mulher articulada. Ela é boa com as palavras, em se comunicar, em expressar ideias e abstrações, em atuar em diferentes segmentos e em conectar o nostálgico com o presente, deixando fluir a existência de uma criança que ainda vive com muita energia dentro de si.  Em suas palavras, permite a convivência de ambiguidades em sua personalidade, ela se diz num primeiro momento uma pessoa simples, mas que também é complexa, conta que gosta de brincar e fantasiar, mas ao mesmo tempo é uma pessoa disciplinada e rígida.

Na infância, Joana relembra que viveu em um universo criativo, envolto de brincadeiras e jogos, praticados com sua família em uma rua sem saída de Lajeado, no interior do Rio Grande do Sul. Seja com os primos que tinham sua idade e que gostavam de descer morros com carrinho de rolimã ou com as pessoas mais velhas de sua família que jogavam carteado (intensamente), Joana teve um contato profundo com jogos em seu ambiente parental. Ela tinha certa predileção por jogos de tabuleiro que, inclusive, os conserva até o presente. “Hoje, eu entendo que [jogar] nos unia”, analisa.

“Tenho essa memória boa das pessoas juntas fazendo algo. Eu sempre gostei muito de brincar, até hoje tenho essa coisa espontânea que talvez funcione mais com as crianças do que com os adultos. Da brincadeira, de brincar, de estar nesse lugar lúdico. A vida adulta vai nos tolhendo ou a gente não vai se permitindo [brincar]”, reflete a Joana adulta.

Ela conta que no ensino superior, apesar de ter ido para outra direção acadêmica, nunca se afastou deste lado lúdico. Joana relembra que, no ano de 2008, começou a trabalhar em uma livraria de Porto Alegre (RS): a Bamboletras – lá ela começou a ler muitos livros, isso porque nos momentos de baixo movimento, podia fazer leituras rápidas e leves antes que novos clientes chegassem, essas características são presentes nos livros infantis, que são curtos e possuem um grande espaço para o imagético, “eu sempre amei muito ilustração infantil”, revela. A partir deste período, ela passou a fazer uma coleção de livros infantis. “Sempre que eu viajo, uma coisa que eu priorizo é comprar um livro infantil”.

Local onde o amor pelos livros infantis começou / Fonte: Google Maps

Anos mais tarde, Joana teve a oportunidade de fazer um doutorado sanduíche – em que se faz um intercâmbio numa instituição de ensino estrangeira, no seu caso foi em Montpellier, uma pequena cidade no sul da França. Ela não dominava o idioma e resolveu explorar as redondezas do local onde morava para passar o tempo e conhecer a sua nova realidade. Um dos primeiros locais que encontrou em seu passeio exploratório foi uma loja de brinquedos “que era praticamente toda a representação da minha fantasia”, define. No segundo andar deste estabelecimento havia um museu de brinquedos antigos. “Essa loja virou para mim uma espécie de refúgio, talvez porque lá eu me sentia muito em casa, muito confortável”, explica. Ela passou a ir, praticamente, toda semana até a loja, mas não para comprar, apenas para olhar e contemplar os brinquedos, deixando nascer uma ideia ainda embrionária sobre sua relação de produção com o lúdico.

Quando voltou para o Brasil, passou a trabalhar com patrimônio e também começou a dar aulas em escolas para o ensino fundamental. Numa dessas escolas, havia um propósito de que os professores fossem criativos, desenvolvendo aulas, atividades e técnicas que dessem liberdade para o docente explorar. “Foi a primeira vez que consegui me conectar comigo mesma no sentido de dar aulas. Eu me sentia muito potente, criativa e livre para poder desenvolver ideias com os meus alunos”, explica. Joana adorava o fato de que as crianças eram muito receptivas às ideias dos professores, mesmo que elas pudessem parecer malucas a princípio.

Em 2017, uma das atividades desenvolvidas por Joana foi na semana da Consciência Negra. “Eles precisavam fazer um perfil de uma mulher brasileira negra a partir de colagens e intervenções com desenhos”, descreve. Mesmo após o fim desta atividade, Joana carregou consigo esta experiência, pois notou a grande dificuldade dos alunos em pensarem e se lembrarem quem são essas mulheres.

No ano seguinte, Joana parou de dar aulas para poder se dedicar ao seu pós-doutorado, em que estudava casas de veraneio, mas mantendo sempre seu pensamento nesta experiência com os alunos do ensino fundamental II. Desenvolvia-se ali uma vontade de criar jogos, em especial por retornar à França e se lembrar daquela casa de brinquedos que tanto a acolheu nesta perspectiva nostálgica e infantil. Além disso, seu engajamento político somado às eleições presidenciais brasileiras que se aproximavam, fomentaram ainda mais a temática sobre mulheres.

Ao retornar ao Brasil, Joana já havia decidido criar um jogo de memória, isso porque essa modalidade fez bastante parte de sua infância. Em sua opinião, este tipo de jogo não é feito com a maior qualidade material e visual, o que não agradava a historiadora, que decidiu fazer diferente. “Eu sempre pensei que não era possível que a gente não pudesse fazer jogos bonitos. Porque eu tenho essa conexão muito forte com a beleza e com a qualidade. Eu acho que essa coisa do material de qualidade está muito ligado com uma herança dos meus pais. A gente nunca teve muitas condições materiais na nossa vida e eu acho que justamente por isso eles tinham apreço por ter algo de qualidade para que durasse muito tempo”, reflete. 

Ainda em 2018, Joana herdou o carro de seu pai. Por um tempo, ela não soube o que fazer com a herança, e passou por um período de reflexão. Tempos mais tarde, ela enfim tomou a decisão de vender o veículo e usar o dinheiro para investir no sonho de criar um jogo de memórias. Todo esse processo envolveu medo e insegurança, mas ela teve o apoio e a aprovação de sua mãe, que a encorajou a concretizar esse objetivo.

Assim nasceu o “Memorelas”, um jogo de memórias sobre mulheres brasileiras. São quinze personalidades femininas, totalizando trinta cartões para o jogo, e um par de cartões em branco para que o jogador possa incluir uma mulher que considere importante. Para a escolha destas mulheres, aconteceram diversas conversas, discussões e pesquisas com várias pessoas para chegar a um grupo seleto de grandes brasileiras.

Joana conta que ao perguntar para as pessoas sobre mulheres brasileiras que consideravam importantes, muitas respondiam nomes estrangeiros, ou até mesmo de homens! O que comprova a pouca valorização e conhecimento sobre as mulheres nacionais num cenário generalizado. Além disso, quando nomes de mulheres brasileiras de fato surgiam, acabavam por serem sempre os mesmos, então ela percebeu a importância de trazer mulheres que não são tão conhecidas, mas que são tão relevantes quanto as outras. Isso traria um valor educacional para o jogo.

“Eu tenho essa conexão muito forte com a beleza e com a qualidade” / Fonte: Acervo Pessoal

No time das quinze mulheres selecionadas, foram escolhidas cantoras, atrizes, pesquisadoras, poetisas, atletas, médicas, etc. Alguns nomes são bastante conhecidos, como o da futebolista Marta e a pintora Tarsila do Amaral, outros não são tão difundidos no conhecimento coletivo, como a socióloga Virgínia Bicudo e a cineasta Anna Muylaert. Para que os jogadores possam conhecer um pouco mais de cada personalidade, a caixinha de jogos também traz um livreto com algumas informações de cada mulher presente nas cartinhas.

O livreto ilustrado traz pequenas descrições sobre as mulheres representadas no jogo / Fonte: Acervo Pessoal

Além do capricho das ilustrações de Joana Heck presentes em todos os cartões, e na espessura e qualidade das fichas, o verso das cartas possui ícones representativos das áreas de atuação de cada uma das mulheres. A caixinha também não fica para trás no quesito beleza e qualidade, ela possui um design pensado para ser vibrante e visualmente encantador, para que além de um jogo, seja uma peça decorativa.  “Esse é um preceito muito forte em mim, dos quais eu tinha e tenho quando criei a Cerelelê, de justamente fazer um brinquedo de qualidade!”, afirma Joana.

A Cerelelê é a editora que Joana criou para fazer a venda de seus jogos, ela optou por também realizar a distribuição dos tabuleiros sem a ajuda de uma companhia terceirizada. Logo, todo o processo de concepção até a chegada ao consumidor final, é feito por ela.

A luta das mulheres sempre esteve presente na vida de Joana / Fonte: Acervo Pessoal

Depois da criação do Memorelas, Joana decidiu continuar na área de desenvolvimento de jogos, e deu vida a um outro jogo com a mesma temática: mulheres. Desta vez, ela decidiu fazer um quebra-cabeças, ao invés de um jogo de memórias. “Sempre estive em manifestação. Quando eu era adolescente fui presidente de grêmio estudantil, fiz parte do grupo de jovens, sempre estive muito ligada a questões políticas em diferentes âmbitos. E eu fiquei, como muitas mulheres que participaram de marchas, tais como o ‘elenão’, com aquilo entalado na garganta. Porque a gente fez manifestações incríveis, com dimensões enormes que eu considero que a mídia não deu a devida proporção. Fiquei com essa imagem na minha cabeça e com esse ressentimento. Então eu tive essa ideia, no ano passado, de fazer mulheres numa manifestação”, explica o contexto de seu segundo jogo, o “Revolucionárias”

Joana passou algum tempo pensando no formato do jogo e concluiu que a melhor opção seria o quebra-cabeças, isso porque ele “tem o tamanho de um poster que a gente pode colocar na parede, a gente transmite para todas as mulheres essa mensagem, faz uma reconexão para a sociedade de união, de estar na rua, de manifestação, dos nossos direitos. [A imagem do quebra-cabeças] é uma manifestação de mulheres brasileiras, entretanto a gente não está dissociado da história do feminismo no mundo. Então a gente traz as bandeiras do feminismo,  como a educação, a liberdade dos corpos, a liberdade de expressão, as conquistas de direitos, as questões do meio ambiente e de trazer mulheres na sua diversidade”, explica.

A imagem do quebra-cabeças começa com a marcha de 1968, uma manifestação contra a ditadura militar brasileira que foi organizada pelo movimento estudantil e amplamente apoiada pela classe artística e intelectual, no jogo a atriz Eva Wilma é destacada à frente da marcha. A manifestação representada no jogo também traz o MTST, o grupo das abelhas, movimentos de comboio e samba, mulheres indígenas, marcha da margarida, grupo de professoras, mulheres LGBT, mulheres da política e a diversidade do corpo feminino.  

“[O jogo] faz uma reconexão para a sociedade de união, de estar na rua, de manifestação, dos nossos direitos” / Fonte: Acervo Pessoal

Com estes dois jogos,  Memorelas e Revolucionárias, Joana recebeu o primeiro lugar no evento Pitch for Change, do IX Festival Games for Change América Latina, em 2021. E em nossa conversa, ela revelou que o seu próximo projeto já está em andamento e terá como temática: a natureza e o meio ambiente! Mais uma pauta de valor social e educacional que enriquece o cenário de jogos de qualidade do Brasil.

“É possível traçar caminhos para desenvolver aquilo que achamos importante para o mundo, naquilo que a gente acha que pode fazer a diferença. A história mostra que a gente sempre lutou e que o trabalho é seguir realmente assim: em luta, para que no futuro tenham outras mulheres falando do trabalho que a gente fez”, finaliza.

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