O universo dos jogos, popularmente, é conhecido por ser um ambiente dominado pelos homens, mas essa não é uma verdade completa, pelo menos não nos últimos anos aqui no Brasil. Desde 2016, a Pesquisa Game Brasil (PGB) aponta que as mulheres compõem a maior parte do público de jogadores no país. De acordo com a PGB, em 2020, as mulheres representaram 53,8% dos jogadores brasileiros, preferindo passar seu tempo jogando nos mobiles, ou seja, celulares. Da população brasileira total, 73,8% admite que tem como passatempo os jogos eletrônicos, independente da plataforma.
Os públicos na pesquisa se dividem entre gamers hardcore e gamers casuais. O primeiro grupo é o dos jogadores que levam os games mais a sério, ou seja, para quem os jogos têm uma importância significativa. Eles são os mais visados pela indústria, pois estão dispostos a gastar mais nessa atividade, comprando pelo menos 3 jogos ao ano.O comportamento dos gamers casuais é diferente: eles têm o hábito de jogar, mas por menos tempo e menos vezes na semana. Ou seja, os jogos não têm uma importância pessoal tão grande na vida desses jogadores. Em números, de acordo com a PGB, os gamers hardcore são minoria, representam 33,5% dos jogadores, já os casuais representam o restante, caracterizando a maioria.
Pedro de Paula é um jogador hardcore, pois considera os jogos importantes para a sua vida e compra mais de 3 games por ano, Ele joga tanto no mobile quanto no console, mas considera a experiência do mobile inferior. Para ele, tem “muita diferença, prefiro jogar no console do que no mobile”, afirma.
Essa opinião é partilhada por outros jogadores hardcore, como indica a própria pesquisa da PGB, pois apenas 33,4% destes opta por jogar nos smartphones, enquanto que para os jogadores casuais, o mobile representa 60,8%. A maioria dos jogadores casuais são mulheres, e a partir disso algumas questões podem ser pensadas, tais como: por que as mulheres são maioria nos jogos casuais? por que as mulheres investem menos no hobbie de jogos eletrônicos que os homens? A estigmatização da masculinidade no meio gamer afasta as mulheres de investirem em jogos de console ou pc?
Alguns dados reforçam que, apesar das mulheres serem maioria, o espaço dos games parece ainda ser dominado por homens. Dos 10 maiores streamers na Twitch, apenas uma dupla é formada por mulheres (aileybeanssa), que trabalham em conjunto, portanto estão juntas na décima posição. Já entre os 6 maiores youtubers de games brasileiros, as mulheres não constam na lista.
A gamer Laura Justino se classifica como uma jogadora hardcore, “a cada três meses eu baixo uns três jogos. Em novembro do ano passado comprei FIFA 21, Call of Duty Cold War, e essa semana o remake do Final Fantasy VII, então diria que sim, compro três ou mais [jogos] por ano”. Ela ainda diz que quando viu as estatísticas da PGB, duvidou muito dos valores apresentados, pois vê as mulheres com muito menos frequência nas plataformas de jogos online: “As mulheres que encontrei mais fácil são as que tem um clã competitivo e marcamos de jogar, agora em sala aleatória de 12 jogadores, por exemplo, costumo ver um nick feminino, e olha lá!”, analisa Justino.
Apesar de ver o número de mulheres ser menor nos servers de videogame, Justino acredita que a visão de que jogos são coisas de homem está ficando para trás. Segundo ela, essa separação de modalidades de brincadeiras vêm desde a infância com os tipos de presentes que ganham dos pais, pois os meninos frequentemente ganham algum console quando criança, enquanto as meninas costumam ganhar outros tipos de presentes, que socialmente são creditados como adequados ao seu gênero.
A streamer Yasmin Gonçalves concorda com essa visão. Atualmente, ela faz lives para a Twitch jogando online, não há periodicidade ou tempo médio de vídeo. Há dias em que ela faz lives de duas horas, outros de oito, e ainda faz vídeos de vinte e quatro horas. Parece não ser preciso dizer que Gonçalves também é uma gamer hardcore. Quando está jogando e fazendo lives com amigos, ela mostra seu rosto, mas sua identidade quando joga online sozinha é oculta, ou seja, esconde o nome feminino para não sofrer episódios de assédio.
“Eu acho que é muito complicado porque tem gente [mulher] que desanima, porque tem muito machismo, eu, por exemplo, tenho que ouvir muita merda: ‘vai lavar louça!’, coisas desse tipo. Não é em todo jogo [que essas situações acontecem]. Eu uso um negócio para ocultar meu nome, eles não sabem que eu sou mulher, mas se eles descobrem eles mandam eu arranjar o que fazer, cuidar de criança”, relata Gonçalves.
A arte-educadora Rebeca Sasso joga desde a infância vários tipos de jogos, sejam de tabuleiro ou online. Na quarentena, Sasso resolveu começar a streamar e conseguiu vários inscritos na Twitch e ela não escapou desse tipo de comportamento vindo de homens: a surpresa é que os ataques vieram de seus próprios seguidores. Isso porque, com as doações em dinheiro vindo das comunidades que a acompanhavam, os homens acreditavam que podiam impor os horários em que ela faria as lives, exigiam que ela enviasse fotos para eles. queriam selecionar os jogos que ela podia ou não jogar e reclamavam quando ela fazia lives sobre arte. “Eles queriam controlar minhas escolhas e controlar meus horários porque eles estavam me ajudando, então eles faziam doações em dinheiro e em contrapartida eles faziam exigências de muitas coisas, e eu não lidei bem com isso, me desestabilizei bastante, foi uma época bem complicada e eu parei de fazer stream, me desmotivei”, relata Sasso.
A REPRESENTAÇÃO
Para além das formas como as mulheres são tratadas no universo dos jogos, existe ainda a maneira pejorativa como são retratadas nos games. De acordo com o artigo publicado na SBGames: “A Representatividade das Mulheres nos Games”, foi nos anos 80 que os orientais começaram a produzir materiais no âmbito dos jogos para as mulheres, levando em conta conceitos estereotipados. De acordo com o artigo, o jogo Pac-Man foi criado para atrair o público feminino, isso porque eles acreditavam que mulheres e crianças gostavam de comer. Ainda foi criada a Ms. Pac-Man (tradução: senhora Pac-Man), para formar um par romântico com Pac-Man, mas isso é uma história para um outro artigo.
Na década seguinte foram criados os famosos pink games, como o jogo Barbie Fashion Designer, em que a ação é trocar as roupas da personagem. Ainda sobre o artigo, as autoras afirmam que no passado acreditava-se que, por razões biológicas, as mulheres não possuíam habilidades com o joystick, por isso jogavam menos ou mal. Além disso, o artigo relata que há de se considerar que os videogames são vistos como objetos masculinos, e as mulheres buscam não jogá-los para não parecerem masculinizadas e sofrerem preconceito pelas próprias mulheres que as rodeiam. Parecem muitas questões sérias para apenas o ato de jogar um jogo, não é mesmo?
E as coisas não param por aí: continuando na onda da representação feminina nos games, um dos fatores que está sempre em pauta é a sexualização constante das mulheres. As personagens, independente da função que desempenham na narrativa, costumam ser objetificadas, apresentando decotes exagerados e corpos desproporcionais. Muitas vezes, as personagens são guerreiras ou lutadoras e seus trajes em nada correspondem com alguém que desempenhe esse tipo de função. Um exemplo é a própria heroína do jogo homônimo Lara Croft, hoje ícone da representatividade feminina nos jogos. Antes de adotar definitivamente a protagonista, ela era uma substituta ao personagem original no período de prototipagem. Rumores dizem que o programador não “queria ter que ficar olhando para a bunda de um cara o tempo todo”.
Muito se discute sobre esse tipo de representação feminina. Embora haja quem concorde que essa abordagem sexualizada seja a correta ainda hoje, muito já se modificou em relação a esse comportamento, mas é possível notar que essa mudança é recente. Isso porque já em 2012, a Tecmundo produziu uma matéria elencando as 10 personagens mais sensuais dos videogames, na qual cada personagem é acompanhada de uma descrição que exalta seus atributos físicos. No espaço para comentários, diversos homens questionam por que outras personagens não constam na lista ou relatam seus desejos sexuais por determinada personagem.
Mesmo hoje, nove anos depois da publicação desta matéria, ainda existem problemas relacionados à aceitação na mudança da representação das mulheres nos games, em especial por parte dos homens que apresentam dificuldades em entender uma representação mais realista. Isso pode ser visto nas notas dadas pelo público de um dos jogos mais premiados da história: The Last Of Us.
Neste jogo a protagonista vive num mundo pós-apocalíptico cercado por criaturas medonhas, canibais e assassinas, e se relaciona com outros poucos seres humanos hostis, todos afetados psicologicamente pela rotina avassaladora em que vivem. Decotes, corpos desproporcionais e poses sexualizadas não possuem espaço na narrativa. Além disso, a protagonista é homossexual. Esses fatores foram suficientes para o jogo ser boicotado pelo público majoritariamente masculino.
Infelizmente, esse comportamento existe por parte de alguns jogadores. Não é possível afirmar se são a maioria ou a minoria, mas eles fazem muito barulho, dando a impressão de ser esse o padrão. Por esse motivo, essas práticas devem ser endereçadas, discutidas e combatidas. Com esse intuito, a Gamegesis produzirá uma série de conteúdos sobre a presença feminina no mundo dos jogos, trazendo criadoras, designers, programadoras, pesquisadoras, divulgadoras, jogadoras e todo o tipo de contribuição feminina para ajudar na supressão desse estigma de que jogos são coisa de menino e de que não há espaço para mulheres se divertirem.