Esportes e e-Sports: semelhanças na competitividade, convergência entre modalidades

Esportes e e-Sports: semelhanças na competitividade, convergência entre modalidades

Por que o esporte tradicional e o e-sport tem mais em comum do que é pensado em primeiro nível e a origem comum nos jogos.

Final do Worlds 2019, Campeonato Mundial de League of Legends | Foto: Riot Games/Arquivo

O esporte, como um jogo e prática competitiva, com objetivos, regras e definições de vitórias e derrotas é uma prática antiga na civilização. Existe desde o esporte como simulação das práticas de caça e sobrevivência, como a corrida, o salto em distância e o lançamento de objetos às lutas. Nesses casos, serviam como um estímulo ao desenvolvimento corporal para preparar para uma futura guerra, enquanto os soldados estivessem ociosos, com as competições sendo realizadas para mostrar a força perante os oponentes.

Uma dessas competições clássicas seria a tão celebrada Olimpíadas, na Grécia Antiga, na cidade de Olímpia, em um santuário a Zeus nas margens do Monte Olimpo, considerada pelos gregos como a morada dos Deuses. As Olimpíadas, antigas e modernas, demonstram como o esporte remete a uma noção de celebração popular, aliando a exaltação da competição a uma ideia de rivalidade amistosa entre Estados inimigos e aliados, seja como adversários políticos ou militares, que colocam os seus melhores atletas para alegrar o público com disputas empolgantes.

Cerâmica representando as Olimpíadas da Antiguidade | Foto: Kapon Editions Courtesy

As Olimpíadas da Antiguidade foram aos poucos acabando, pelos conflitos internos e externos na península grega, mas a presença do esporte e das disputas esportivas para o público continuaram a ser comuns ao redor do mundo antigo e depois nas Idade Média, Moderna e Contemporânea.

Depois de quase dois milênios, ressurgiu a ideia das Olimpíadas Modernas, agora celebrando o esporte e harmonia entre os países, com atletas de todo o mundo indo para uma sede definida , a cada quatro anos, com os melhores atletas em esportes modernos, como o tênis e o ciclismo, e clássicos, como o atletismo e a luta greco-romana.

Mas os esportes começam a incluir práticas que, num primeiro instante, parecem estar longe daquelas de sobrevivência primitivas. Um exemplo é o uso de bolas, que não parece estar ligado com a caça, a fuga para sobrevivência ou a colheita de frutas, mas que, em uma suposição, pode indicar como um objeto pode atravessar um obstáculo com as mãos ou com os pés, e a continuação de atividades relativas à sobrevivência do ser humano, como a corrida, o salto, a esquiva e a visão estratégica.

Ao longo do tempo, avançando para o século 18, as Revoluções Industriais promoveram transformações de antigos elementos da cultura. Dentre elas,  os espetáculos populares e culturais, cuja tradição era estabelecida pela oralidade e que começam a ser redigidos e impressos. E conforme o imperialismo das potências industriais atingia outras regiões do planeta, com comerciantes, marinheiros e capitalistas, essas tradições culturais seguiam e eram implantadas, inclusive no esporte. Um deles foi o futebol, que tem relações culturais ao redor do globo, com atividades praticadas com bola redonda e com o jogo conduzido com os pés, mas que teve um livro de regras  oficialmente redigido e espalhado ao redor do mundo.

O Futebol e o esporte moderno

Gravura de uma das primeiras partidas de futebol realizadas | Foto: Hulton Archive/Getty Images

O Futebol teve o seu primeiro registro de livro oficial em 1848 na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. O registro, que passou por modificações ao longo dos anos, define as medidas ideais do campo, o uso de uma bola de couro redonda inflada por uma câmara de ar, qual o tamanho e o formato das traves retangulares, as marcações dentro do campo, como se marcar gols e a quantidade de jogadores em campo. 

Como todo jogo, as regras e a definição inicial para a partida foram se modificando ao longo dos anos, como o acréscimo de um jogador em uma posição que permite usar as mãos dentro de determinada área, o goleiro, a definição do tempo limite de dois tempos de noventa minutos, a regra do impedimento, dentre outras.

A partir das definições das regras, o esporte começou a ser praticado entre clubes estudantis e de lazer da elite inglesa, logo caindo nas graças do povo, com mais e mais clubes surgindo, por meio da classe operária e de outras associações e  centros, disputando torneios entre bairros e cidades de forma amadora no início.

Final da primeira Copa do Mundo, em 1930, com a seleção uruguaia como campeã | Foto: Allsport/Hulton

 Os jogadores, aos poucos, se profissionalizaram e se dedicaram exclusivamente para o esporte, com treinos constantes, estudo de táticas, preparação física e jogadas preparadas, com toda uma estrutura de treinadores, auxiliares, médicos e outros profissionais para auxílio do atleta. Todo esse aumento ocasionou a formação de organizações ou de ligas nacionais e continentais, em adição à união de jogadores de mesma nacionalidade para comporem seleções nacionais e se enfrentarem em torneios como a Copa do Mundo ou os Jogos Olímpicos.

Toda essa estrutura transformou os jogos em verdadeiros espetáculos organizados, com fãs ao redor do país aguardando a transmissão do time do coração enfrentar outro clube do outro lado do país, ou do mundo. Mas como  essa profissionalização e crescimento do futebol se relaciona com jogos eletrônicos e suas competições?

E-sports: começo e crescimento

Registro do primeiro torneio de e-sport, o Intergalactic Spacewar Olympics | Foto: esports.net/Arquivo

Os e-sports, ou esportes eletrônicos, começaram sua história nos primórdios dos videogames, nos primeiros consoles e fliperamas, com campeonatos inicialmente em universidades. O primeiro torneio foi registrado em 1972, na Universidade de Stanford, com os competidores disputando Spacewar, mas logo em seguida as empresas perceberam o potencial em divulgar e popularizar os seus jogos por meio dos torneios. No entanto, com computadores e consoles pouco potentes e uma mídia livre como a Internet ainda não-existente, demoraria para que tais competições atraíssem mais público e reunissem grandes legiões de fãs e de jogadores desafiados a se tornarem os melhores.

Avançando duas décadas, nos anos 90, vemos maior adesão aos e-sports, com times se organizando ao redor de novos gêneros de jogos que eram mais competitivos e abriram o caminho para os jogos multijogador, jogando em uma mesma rede ou até mesmo por meio da internet, como as franquias de jogos Doom e Quake, da id Software. Isso abriu o caminho para torneios maiores acontecerem, aliando à popularização dos jogos, ao avanço dos computadores e da internet, com os jogadores, em equipe, participando de grandes torneios. Mesmo assim, o início da profissionalização dos jogadores, se dedicando completamente para o e-sport, ainda demoraria para ocorrer.

As Lan House continuam populares em alguns lugares, por seu preço e pelos equipamentos | Foto: Unit Zero/Arquivo

Com a virada do milênio, a tecnologia e a informática evoluíram, favorecendo a popularização das Lan Houses, lojas que alugavam computadores por hora. Isso garantiu acesso a uma nova geração de jogadores que não tinham recursos para adquirirem computadores, tornando-se o paraíso para eles e apresentando-os aos jogos multijogadores. Como o Counter Strike, da Valve, que, com suas atualizações, é um dos jogos mais jogados e um dos e-sports mais vistos no mundo até hoje, com jogadores e espectadores ao redor do globo. Outro jogo que afetou o cenário dos e-sports e até transformou o jogo em um esporte nacional na Coreia do Sul foi o Starcraft, da Blizzard, com jogos sendo transmitidos pela televisão e uma audiência de milhares em estádios.

O avanço das velocidades de internet também auxiliou no aumento dos modos competitivos online, com jogos dedicados exclusivamente pelo modo de jogo pela internet. Como os MOBAs, capitaneados pelo DoTA, mas com a popularização da sequência DoTA 2 e do League of Legends, que transformaram os e-sports em fenômenos ao redor do mundo. Esses jogos foram popularizados principalmente pelas plataformas de transmissões ao vivo, como a Twitch, que criaram legiões de fãs ao redor dos e-sports, seus jogadores e seus clubes. Fãs ávidos a assistirem os campeonatos ao vivo e as transmissões do treinamento do dia a dia dos jogadores nas filas ranqueadas ou nos modos competitivos. 

A Twitch é a maior plataforma de transmissão de jogos e um dos fatores da massificação dos e-sports | Foto: Pavlo Gonchar/SOPA Images/Getty Images

Dentro dessas plataformas, os torneios de jogos mais populares, como o Worlds do LoL e o Invitational do Dota 2 e os Majors de CS, possuem transmissões na casa de milhões de espectadores e as premiações para os e-atletas na casa de milhões de dólares.

Um desses exemplos do sucesso dos e-atletas perante os atletas tradicionais é citado pelo Moacyr Alves, da 7WPlay: “Aqui temos questões interessantes. Os ‘e-atletas’ são muito maiores em matérias de seguidores e engajamento nas redes sociais. Basta ver o fenômeno “Nobru” que por fim era maior até mesmo que o time do Corinthians e virou o que virou, hoje o rendimento dele é milionário por conta de todas as questões que ele já fez. Claro que os salários dos jogadores de futebol são muito maiores, mas já estamos vendo jogadores de games ganhando fortunas.”

Moacyr Alves é um dos sócios da 7WPlay. | Imagem: 7WPlay/ Arquivo

Além dos e-sports mais populares, que geralmente seguem a tendência de mais jogados e dos mais vistos nas plataformas de streaming, uma série de jogos têm torneios competitivos e possuem comunidades fiéis. Como a comunidade de jogos de luta, que é extremamente ativa desde a década de 1990 e organiza campeonatos gigantescos como a EVO, o Evolution Championship Series, maior torneio de jogos do gênero e com os campeões marcados na história da comunidade.

Outro fator de comparação com o esporte tradicional é o preconceito e a visão negativa da sociedade, mesmo que, entre o e-sport e esporte, a diferença seja apenas na questão técnica e do uso de diferentes partes do corpo, como comenta Moacyr: 

“A diferença é mais técnica do que qualquer outra questão. Estamos falando de público, atletas e performance, ou seja, tudo que se tem no mundo do esporte. A grande diferença é que em outros países as cifras são bem maiores e a compreensão também. Aqui no Brasil ainda lutamos contra o preconceito de dois fatores nos esportes eletrônicos: ‘É só um joguinho’ e ‘Temos que tomar cuidado com a violência nos jogos’. Isso já foi vencido no mundo inteiro e no Brasil ainda engatinhamos com esse tipo de preconceito bobo criado por quem não entende do assunto. Não preciso falar do quanto isso às vezes atrapalha, no fundo, para quem joga, é algo totalmente ultrapassado, mas na mente de muitos e principalmente de alguns congressistas isso é um tabu.”

Outro estilo de jogo que não é tão comum dentro do público de e-sports, mas que vai de encontro com os esportes tradicionais, são os jogos simuladores de esportes físicos, como NBA 2K, NFL Madden e, no caso do esporte mais tradicional e popular do Brasil, o Futebol. Esse último em duas implementações, a série Pro Evolution Soccer,  que na próxima atualização mudará o nome para e-Football, e a série FIFA, ambos disponíveis para uma multitude de plataformas,  com grandes campeonatos por abrangerem um público de jogadores e fãs mais ligados ao futebol.

Thiago ‘Avaré’ Engel na conquista do e-Brasileirão de 2019 | Foto: Thiago ‘Avaré’/ Redes Sociais

aUm dos jogadores ilustres é o Thiago ‘Avaré’ Engel, e-atleta de PES pelo São Paulo e-Sports, campeão do e-Brasileirão em 2019 e do Beyond The Summit, que contou para nós um pouco da história e das visões sobre o e-sport relacionado ao esporte tradicional. Começando no e-sport originalmente com um time de CS:GO, ele migrou agora para o PES, disputando alguns torneios online e vencendo e logo indo para os torneios presenciais nas cidades próximas de Avaré, sua cidade-natal. Conseguindo destaque nesses torneios, enfrentando grandes jogadores e vencendo alguns deles. Thiago, então, decide se dedicar completamente ao PES e em pouco tempo disputa com os melhores do Brasil e do mundo, como GuiFera, também jogador do SPFC e-Sports, e consegue vencer o e-Brasileirão.

Sobre os clubes de futebol entrando no e-sport, ele nos conta: “Eu acho que vai sempre caminhar meio lado a lado assim, a gente vê assim que hoje tem muitas organizações grandes de e-sport independentes. Mas tem alguns clubes também que já são grandes no cenário, tipo hoje tem o Flamengo. O Flamengo e-Sports que é grandão, tem o Santos ali que também é, tem o Cruzeiro que teve problemas na parceria, mas agora já tá voltando com tudo também, tem o São Paulo que entrou agora e esse ano entrou vários pra modalidade do PES. Então eu acho que os clubes em si já vão procurar o que eles sabem que dá visibilidade que tem hoje em dia.”

Final da WESG LATAM entre o Thiago Avaré e GuiFera, companheiros do São Paulo e-Sports | Foto: @arikaye/Divulgação

Sobre como é ter o apoio e a cobrança dos torcedores tricolores por jogar pelo clube e a comparação com organizações independentes, o Thiago conta: “Cara, eu acho bem legal, esse ano a gente sentiu muito isso, a gente foi apresentado no São Paulo em fevereiro e desde então a gente tem tido um apoio absurdo da torcida cara, porque as empresas que entram, né? Para criar um uma empresa de e-sports elas demoram um pouco para criar uma fanbase. Já no clube não, o clube já tem toda uma torcida e toda uma torcida que às vezes já curte e-sport, já acompanha e quando ela vê o clube dela ali disputando, ela vai torcer. Então a gente teve uma onda muito grande, lógico que de cobrança também, de apoio e de tudo. Mas eu acredito que essa é um pouco a diferença das agremiações que tem um clube por fora das que não tem.”

O Thiago ‘Avaré’ também demonstra positividade com os torneios no Brasil, salientando a estrutura da World Electronic Sports Games, a WESG LATAM, em março, na qual foi vice-campeão, e da estrutura e do apoio da CBF no e-Brasileirão, com direito a transmissão em canais esportivos da televisão por assinatura. Além disso, com a nova mudança do PES para o e-Football, depois da qual o jogo ficará gratuito e com a proposta de ser possível jogar entre jogadores de diferentes plataformas, Thiago espera que o jogo cresça mais ainda e chegue a um patamar nunca antes alcançado.

E-sports e Esportes: jogos em essência

Jogo de futebol amador em São Paulo visto de cima | Foto: Foto: Renato Stockler

    Quando observamos o futebol, a modalidade com maior audiência no Brasil e com atletas disputando competições de alto nível, movimentando jogadores, profissionais, amadores e que jogam entre amigos, é possível perceber que o esporte continua sendo, em sua essência, um jogo.

    Os grandes ídolos do futebol, como Pelé, Zico e Messi, marcaram uma geração de jogadores que sonhavam em se profissionalizar e que continuaram a jogar com seus amigos, colegas e vizinhos. Hoje, os exemplos são outras estrelas, agora no e-sport, como Fallen no Counter Strike, Faker no LoL e Nobru no Free Fire, que movem pessoas sonhando em um dia serem grandes e-atletas e, por isso, continuam a jogar e se aprimorar dentro dos jogos.

    Com as ferramentas da Gamegesis, trabalhamos em diversas frentes na análise e compreensão de jogos, dentre elas a de que jogos são atividades regulamentadas para organizar o processo de interação do jogador,  tendo o divertimento como um dos resultados almejados. Estamos cientes que  tais regulamentos são modificados ao longo das eras, mas que precisam ser bem definidos para não existir quebras ou ações absurdas. Desde o ajuste do poder do chute de um atacante no PES até o ajuste da regra de faltas e punições dentro do acordo entre jogadores e juízes. Os esportes são, então, jogos em sua essência, em que os melhores e mais preparados jogadores, tanto nos esportes quanto nos e-sports, colocam o seu talento e esforço para a visibilidade do público, ansioso por mais um espetáculo.

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